Depois de quase quatro décadas dedicadas ao Municipal, a bailarina Cecília Kerche ganha e-book ao anunciar sua aposentadoria
Por SECEC-RJ em 06/10/2021
– Como a senhora recebe essa homenagem com a publicação do e-book “Uma bailarina made in Brazil”?
– Foi uma surpresa. Até porque nós não temos no país esse hábito de se preservar a memória. Tanto que o Theatro Municipal realizou já diversos espetáculos memoráveis e recebeu grandes estrelas, mas não houve filmagem desses eventos. Até das minhas atuações há pouco registro e só tenho conhecimento de gravações que não foram oficiais. Pelo menos, pelo e-book será possível, principalmente os mais jovens, verem o que as outras gerações assistiram presencialmente, através das fotos e dos textos. Haverá nesta quarta-feira uma live que participarei. [Pode ser acompanhada a partir de 06/10, às 19h, no canal do YouTube do Theatro Municipal pelo link ou pelo Facebook no link]. Foram 37 anos de uma carreira limpa, de amor à arte e de devoção a um teatro. O Theatro Municipal me fez mudar para o Rio, mudou o curso da minha, pois tudo o que eu queria era ser a primeira bailarina dessa casa.
– E qual era o significado do Municipal para uma jovem bailarina vinda do Interior?
– Era o meu maior sonho desde a adolescência pertencer ao Theatro Municipal do Rio. É o mesmo que uma criança que começa a estudar balé em Moscou e sonha em pertencer ao Bolshoi. Foi o resultado de muito empenho próprio de anos, do apoio da minha família e depois do meu marido [professor Pedro Kraszczuk], que conheci aos 13 anos. Fiz o concurso em 1981 e no ano seguinte comecei no Corpo de Baile. Me determinei para isso e para depois vir a ser a primeira bailarina dessa que era a única companhia clássica do país.
– Como se deu o início de sua carreira internacional?
– Ocorreu através da Natalia Makorova que veio ao Brasil para montar um balé e ficou apaixonada quando me viu dançar e me convidou para participar de um documentário sobre a vida dela. Segundo ela, eu era a pura bailarina clássica. Foi como estender o tapete vermelho para o Oscar. Eu admirava demais o trabalho dela e sua forma de interpretar e de dançar muito próprios. Depois ocorreram diversos convites internacionais, a começar pelo “La Bayadère”, no Teatro Colón de Buenos Aires, no início dos anos 1990.
– Tendo pisado nos palcos mais importantes do mundo em quatro continentes, não surgiu uma tentação de ingressar numa companhia internacional?
– Pertenci ao Theatro Municipal numa época em que era efervescente. Tinham óperas e balés extraordinários, riquíssimos em suas produções. Não sentia falta de sair do meu país. Sentia falta do contato com outros bailarinos e de buscar novas experiências do exterior, mas não para ficar. Dancei ao lado dos bailarinos mais renomados e icônicos do balé clássico. Fui muito feliz na minha carreira.
– De todo o repertório do balé clássico, há algum que lamente por não ter dançado?
– Uma bailarina é sempre inquieta e tem vontade de fazer coisas diferentes, mas o que realmente me fez falta foi não ter dançado “A Dama das Camélias”. Cheguei a conversar com o Neumeier [coreógrafo John Neumeier] sobre essa possibilidade, mas ele já não saía da Europa e não foi para frente. Por esse motivo tenho essa frustração e não estou completa como artista.
– No entanto, a senhora dançou quase todo o repertório clássico. O balé “Giselle” ainda é seu favorito?
– Sim. Foi o primeiro que dancei completo. Foi na minha formatura e ao lado do meu marido. Depois o dancei na Rússia, na Inglaterra e fiz vários papéis diferentes desse balé. Até hoje a música dele não me sai da cabeça.
– A senhora está se aposentando do Theatro Municipal e qual é a sensação de estar encerrando esse vínculo?
– Estou me aposentando como funcionária pública do Estado do Rio, mas já me despedi dos palcos em 2016 e depois só dancei papéis pequenos. Desde os 30 anos eu dou aulas, palestras, sempre fiz parte de comissões de júri e dei consultoria. Meus planos para o futuro são trabalhar para passar às outras gerações o que aprendi. Enquanto restar esse encanto pela dança, vou me dedicar a ela.
– E o que aconselharia aos jovens bailarinos que estão começando?
– Eu aconselho a ter persistência, tenacidade, disciplina. Tudo depende de ser vocacionado para a dança e ter dedicação. Não é para pensar em status, em agradar a família. É para seguir um objetivo profissional e de carreira.