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No centenário de Celso Furtado, a memória do economista que o mundo aprendeu a respeitar


 O economista Celso Furtado foi intelectual de prestígio internacional e um dos mais importantes economistas brasileiros do século XX. Nascido em Pombal, no sertão paraibano, em 26 de julho de 1920, Furtado interpretou e agiu sobre o Brasil em sua vitoriosa carreira. Criou a Sudene, durante o governo JK, para atacar as mazelas que impediam o desenvolvimento do Nordeste. Depois, foi ministro extraordinário do Planejamento no governo João Goulart, cargo criado para que pudesse solucionar os desequilíbrios que contextualizaram a crise pré-golpe militar de 1964.

 Perseguido pela ditadura, o brasileiro manteve, no exílio, o prestígio internacional, passando a ser interlocutor do senador Bob Kennedy e de intelectuais como Erich Fromm e Martin Luther King. No dia seguinte à sua cassação política, no Ato Institucional nº 1, recebeu convites para trabalhar no Instituto Latino-Americano para Estudos de Desenvolvimento, no Chile, e também para lecionar em três prestigiadas universidades dos Estados Unidos: Harvard, Columbia e Yale, para onde acabou indo. Um ano depois, o presidente francês de direita, Charles de Gaulle, autorizou sua contratação para a maior universidade de seu país.

A passagem consagradora pela Sorbonne durou 20 anos. O período representou um doloroso hiato para o economista acostumado à dupla função de intelectual e estadista. “Ele ficava com a cabeça no Brasil”, lembra a jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar, viúva de Furtado. Era difícil estar exilado para quem, até pouco, formulava políticas prioritárias de governo. Celso tornou-se doutor em Economia pela Universidade de Paris (Sorbonne) em 1948, com a tese “L’économie coloniale brésilienne”.

O grande profissional também foi técnico de Administração do governo brasileiro (1944-45), economista da Fundação Getúlio Vargas (1948-49). Fez pós-graduação na Universidade de Cambridge, Inglaterra (1957), sendo Fellow do King’s College.

 De 1949 a 1958, integrou a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) sediado em Santiago, no Chile, contribuindo de forma decisiva, ao lado do economista argentino Raúl Prebish, para a formulação do enfoque estruturalista da realidade socioeconômica da América Latina.    

Como imortal da Academia Brasileira de Letras, Furtado ocupou a cadeira número 11 e tomou posse em 31 de outubro de 1997. No discurso proferido na solenidade revelou: “Quando, finalmente, aos 26 anos de idade, comecei a estudar Economia de maneira sistemática, minha visão do mundo já estava definida. Assim, a Economia não chegaria a ser mais que um instrumental, que me permitia com maior eficácia tratar problemas que vinham da observação da História ou da vida dos homens em Sociedade. Pouca influência teve a Economia, portanto,  na conformação do meu espírito. Nunca pude compreender a existência de um problema “estritamente econômico”. Por exemplo, a inflação nunca foi, em meu espírito, outra coisa senão a manifestação de conflitos de certo tipo entre grupos sociais. Da mesma forma, uma empresa nunca foi outra coisa senão a materialização do desejo e poder de um ou vários agentes sociais, em uma de suas múltiplas formas”.

Autor de livros como “Formação econômica do Brasil” (1959) e “Criatividade e dependência na civilização industrial” (1978), entre muitos outros títulos, Furtado revolucionou a teoria ao propor que o subdesenvolvimento não era uma “etapa” do desenvolvimento capitalista, mas uma posição das economias periféricas frente às centrais e que não seria superado apenas pela livre atuação do mercado.

Furtado não se via como um “homem de letras”, mas um “homem de pensamento”. E assim é considerado pelos críticos e estudiosos de economia, visto que sua obra vai além de outras interpretações da realidade brasileira.

  Durante toda a década de 1970, dedicou-se intensamente às atividades docentes e publicação de livros. Foi beneficiado pela anistia decretada em agosto de 1979. Em agosto de 1981 filiou-se ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Participou intensamente da campanha de Tancredo Neves às eleições indiretas para a presidência da República e da comissão destinada a elaborar o Plano de Ação do Governo de Tancredo.

 Com  José Sarney empossado presidente, foi nomeado embaixador do Brasil junto à Comunidade Econômica Europeia, sediada em Bruxelas, na Bélgica. De volta ao Brasil, em fevereiro de 1986, tomou posse como Ministro da Cultura, elaborou a primeira legislação de incentivos fiscais e fez a defesa da identidade cultural brasileira.  Em agosto de 1988 transmitiu o cargo.

 Foi casado com a argentina Lucia Tosi, com quem teve dois filhos. E depois teve uma duradoura união com a jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar, a curadora da obra de Furtado, uma guardiã do monumental legado cultural deixado por ele. 

“Para ele, o conhecimento só servia se fosse para prestar serviço à comunidade”, comenta o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Furtado olhava as formas como a economia se relacionava com a vida social, para pensar em que medida poderia beneficiar a vida das pessoas em sociedade. Sua vida sempre se confundiu com a história da sociedade brasileira”, diz

Em comemoração aos cem anos do nascimento do economista agora, Rosa Freire D’Aguiar prepara uma compilação em livro de cartas Furtado com cerca de 30 intelectuais e políticos brasileiros, além de 20 estrangeiros. Antonio Callado, por exemplo, troca ideias depois de ter escrito “Quarup” e Carlos Lacerda escreve ao economista fazendo um convite para que entre na Frente Ampla contra a ditadura militar.

O primeiro projeto comemorativo ao centenário foi “Diários Intermitentes de Celso Furtado”, lançado em 2019. Resgatados integralmente de seus arquivos pessoais, reúnem anotações deixadas  de 1937 a 2002. Ele não foi um praticante assíduo da arte dos diários, e podia se passar algum tempo sem que fixasse num caderno, numa agenda, numa folha avulsa, o presente mais intensamente vivido. Mas essas notas foram a oportunidade de registrar momentos marcantes e decisivos de sua vida, impressões de viagens a países distantes, a participação na Segunda Guerra Mundial, embates políticos no Nordeste, diálogos com intelectuais e políticos com quem conviveu no Brasil e no exterior, e, por vezes, frustrações e desabafos. É um precioso material até então inédito que completa as memórias que Celso Furtado deixou e que, sobretudo, mostra uma face desconhecida de um economista e professor, que também foi um protagonista privilegiado da história do Brasil, da América Latina e da Europa na segunda metade do século XX.

Celso Furtado morreu,  no Rio de Janeiro, em 20 de novembro de 2004. Rosa fez o registro do momento. “ Era um sábado, final da manhã. Celso queria ver o documentário “Sob a névoa da guerra”, em que Robert McNamara relembra seus tempos de ex-presidente do Banco Mundial e ex-Secretário de Estado dos EUA. Tínhamos perdido o filme em Paris, desde então premiado com o Oscar de melhor documentário. Eu ia à locadora pegar o DVD e, na volta, passaria pela feirinha da Arcoverde para comprar salmão e quem sabe uma pamonha. Antes, resolvi fazer um café. Quando entrava na cozinha percebi que Celso, em pé e levemente debruçado sobre a mesa de jantar, lendo as manchetes do jornal do dia, fez um movimento para trás. Recuei, o segurei pelo braço: Cuidado, você vai cair. Caiu. Parada cardíaca. Nada a fazer.”